Lula Marques/Folha
A Brasília dos dias que correm faz lembrar a figura do rei shakespeariano Ricardo III. Trata-se daquele personagem que, num momento de desespero, vendo-se a pé e cercado por tropas inimigas, gritou: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”.

O monarca da obra atribuída a Shakespeare tornou-se precursor involuntário da barganha como último recurso dos desesperados. Ao longo dos tempos, o apelo foi sendo adaptado por outros personagens em apuros. Sob Lula, ganhou uma última e constrangedora versão: “Dinheiro! Dinheiro! Meu reino pela CPMF!”

Na atmosfera de bazar que envenena o Senado, barganha-se tudo. Inclusive a honra, a ética e o bom senso. O balcão, já apinhado de verbas e cargos, ganha na próxima terça-feira uma mercadoria nova: o mandato de Renan Calheiros.

Cassando-o, o consórcio governista arrisca-se a produzir uma reação que vai custar a Lula a extinção da CPMF. Salvando-o, o conglomerado parlamentar de Lula mantém vivo o plano de renovar o imposto do cheque. E, com ele, uma arrecadação anual de R$ 40 bilhões.

O governo excedeu-se em erros na tramitação legislativa da emenda da CPMF. Na Câmara, levou um baile do PMDB. Posterga daqui, adia dali, Lula entregou Furnas ao grupo do insigne deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). De quebra, deu à bancada peemedebista de Minas promissória que vale uma diretoria da Petrobras.

No Senado, Lula negociou por cima –com José Serra, Aécio Neves e os outros governadores do PSDB— um acerto que, na base, a maioria da bancada tucana tratou de bicar na altura do fígado. Puxa daqui, estica dali, a partida foi empurrada para uma prorrogação indesejada.

Ao levar os próprios erros às últimas conseqüências, o Planalto acomodou Renan na marca do pênalti. Não como bola da vez, mas na condição de cobrador do pênalti que pode decidir a partida.

Renan é dono de meia dúzia de votos. Se o mandato dele for passado na lâmina, Lula dá adeus à maioria de três quintos. Se o pescoço do senador sobreviver ao segundo julgamento, o Planalto ainda terá de buscar o 47º, o 48º e o 49º votos. Para contornar todos riscos, terá de cavar o 50º. Quiçá o 51º.

Ganha um dia de isenção da CPMF quem adivinhar o que vai acontecer com Renan Calheiros. Em setembro, quando entregou ao senador a primeira absolvição, o Senado informou ao país de que matéria-prima é feito: uma argamassa em que se misturam conivência e cumplicidade.

Agora, sob os auspícios do Planalto, os senadores acrescentarão à mistura uma dose de amoralidade que elimina do quadro político aquele ton-sur-ton que confere aos delinqüentes uma máscara de indistinção. No dia seguinte à re-absolvição de Renan, a cafajestice terá cara de cafajestice. O repugnante terá cara de repugnante. A imundície terá cara de lama.

O Senado está a um passo de se converter num sub-distrito do município alagoano de Murici. E Lula, ainda cercado pelas tropas inimigas, verá o próprio grito misturar-se ao coro que vem de sua base congressual: “Uma emenda! Um cargo! Qualquer coisa pelo meu voto!”